ALGUNS TEXTOS






CARTA ENDEREÇADA AO MENINO JESUS,
DA PARTE DE UM ADVOGADO ESFOMEADO



Querido Menino Jesus, espero que esteja tudo bem contigo;
e com a Maria, o José, e os animais no teu postigo.
Saúdo-Te, Senhor, em toda a Tua Glória!
Mas antes que digas que penso apenas no meu umbigo,
vou contar-te a minha história,
o meu canto, o meu pranto, a minha lamúria.
Pois de profissão advogado sou,
como já era o meu pai, o meu tio e o meu avô
e vivo agora na mais profunda penúria.
Há alguns anos que sigo pelo Direito,
incluindo curso, estágio, tudo feito a preceito.
Sou jovem, forte e pratico desporto
sou bom rapaz e ainda sou solteiro.
Pudera! Se fizer a soma do meu espólio e dinheiro,
nem tenho onde cair morto.
Por isso, Menino Jesus, com toda a Tua bondade,
ajuda esta alma que Te quer com amizade,
e que, do fundo, do coração, Te quer amar:
Jesus, tem a bondade de me auxiliar!
Há para aí tanta gente pírulas e demente!
Todavia, nenhuma dela é minha cliente.
Por isso, peço-Te que leves uns casos para a minha alçada,
coisas poucas, nada de mais, quase nada.
Apenas que sejam suficientes
para que possa sentir comida nos meus dentes.
Um homicídio voluntário, daqueles que vêm nos noticiários.
Ou tráfico de menores, ou outras pessoas dependentes, até mesmo com adolescentes;
desde que receba os meus honorários.
Ou crime de difamação ou injúrias contra pessoas conhecidas.
Será tanto melhor e maior a agravação se for contra a
memória de gente falecida.
Jesus, dá-me qualquer coisa, um crime de devassa da vida privada;
Um furto de veículo, ou apropriação ilegítima de coisa achada,
Uma burla informática, uma extorsão, uma usucapião,
Insolvência dolosa,
Administração danosa,
Discriminação racial,
Sabotagem contra a defesa nacional,
ou um simples caso de adultério.
Jesus, para mim tanto faz, fica ao Teu critério.
Louvado Senhor, e se sentires compaixão pelo meu triste fado
Eu prometo que apenas de virtudes se fará o meu caminho.
Desde que enchas o saco de crimes, fraudes e um cliente endinheirado
e o metas ao lado da árvore, no meu sapatinho!




FAIT DIVERS DE UMA TARDE OUTONAL


Maria dos Prazeres abriu-lhe a porta de casa, depois de ter ouvido tocar duas vezes. Manelito nem lhe deu tempo de dizer nada. Entrou com um passo rápido e deu um forte murro a Maria dos Prazeres. Esta caiu no chão, desamparada. Manelito aproveitou para lhe bater com o martelo na cabeça. Provavelmente, morreu com a primeira pancada. Depois, Manelito descansou um pouco, limpou o suor da cara e começou a retirar as facas e a serra de dentro da mala que trazia consigo.

Começou pela cabeça. Demorou cerca de dois minutos a separá-la do resto do corpo. O pior foi os braços. Teve de usar vários serrotes para os separar do tronco e, depois, para os dividir em várias partes, o antebraço em três bocados, depois as mãos, com cada dedo cortado minuciosamente.

A seguir, as pernas, os pés, e o resto do tronco.

Passadas umas horas, Manelito conseguiu dividir o corpo em 200 bocados pequenos, que colocou em sacos térmicos.

A seguir, entregou-se à polícia.

No julgamento, o juiz perguntou-lhe:

– Senhor Manuel, porque é que fez isto?

Ao que Manuel respondeu, com um toque de resignação:

– Senhor doutor juiz, no fundo, sou um desmancha-prazeres.






O PUDOR EXPLICADO ÀS CRIANÇAS


O surdo ripostou, disse que era impossível; quando muito, um paralítico estaria a ver uma corrida de cegos.
O mudo respondeu, dizendo que se tratava provavelmente de um engano seu. Provavelmente teria visto mal, se calhar nem era uma corrida o que estava a dar na televisão mas sim um concurso de salto em comprimento para pernetas. O surdo disse-lhe que deveria ser cego, como é que haveria de confundir as duas coisas, mas o mudo já não o ouvia e pousou o telefone com os dentes pois não tinha mãos. O surdo continuou com o telefone nas mãos, não porque lhe apetecesse mas porque não via nada dentro daquela maldita sala e não podia pedir ajuda à sua mulher, que estava entrevada numa cama alta, daquelas com grades. Nem pôde abrir a porta da rua ao paralítico, que tocava insistentemente, depois de ter subido ao terceiro andar daquele prédio sem elevador.